A idade varia e nem todos a alcançam, mas chega o dia em que a longa intoxicação da juventude reflui. Os ânimos serenam, e a febre da razão retrocede. O mundo sempre foi assim ou se tornou agora, só pra mim, tão distinto do que parecia ser? A convivência com filhos (ou sobrinhos) pequenos e a presença de pais idosos (ou falecidos) é um fator de mudança: a percepção do tempo deixa de ser tão unilateral quanto na juventude. Fui criança, serei velho. Começa um balanço de saldos, danos e perspectivas. Paralelamente, o otimismo espontâneo diante do amanhã começa a ceder e dar lugar a uma ponta incômoda de apreensão. A voz da sobriedade se faz ouvir: “É difícil lutar contra o desejo impulsivo; o que quer que ele queira, ele adquirirá ao custo da alma” (Heráclito). Alguns despertam, a contragosto, para essa nova etapa da vida com um inconfundível sensação de ressaca na mente. “E agora, José?”
O valor do amanhã – Eduardo Gianetti p.99

 

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Ano-Novo, vida nova


Voto para o ano novo: que encontremos jeitos de desejar sem transformar nosso desejo em obrigação


UMA LEITORA, que me autoriza a citar seu e-mail, mas prefere que seu nome não seja mencionado, pergunta: “Gostaria de saber sua opinião sobre parceiros que simplesmente somem, desaparecem mesmo, sem deixar rastro. Cancelam telefones, e-mail, conta no Skype e somem, sem se despedir, sem nem mesmo um MSN. E não falo de um relacionamento de alguns dias, mas de anos. Oito para ser mais precisa. Nem falo de um adolescente, mas de um homem de 57 anos.

Ele foi trabalhar no Oriente Médio, num alto cargo, a empresa fechou e ele desapareceu. Não morreu, não foi sequestrado por terroristas. (…) O que leva alguém a agir assim? Obrigações econômicas não estão em jogo”.

A cada ano, mundo afora, há centenas de milhares de pessoas que somem e nunca mais dão notícias a familiares e amigos.

Quando se trata de adultos sem obrigações jurídicas (dívidas ou pensões alimentícias, por exemplo), a polícia descobre, eventualmente, o novo paradeiro ou a nova identidade de quem sumiu, mas só o próprio desaparecido pode autorizá-la comunicar estas informações aos parentes e amigos de sua vida, digamos assim, “anterior”.

No passado, nesta página, se me lembro direito, já assinalei o fato de que, estranhamente, em geral, quem some não vai longe: acaba numa cidade parecida com a que ele abandonou, a poucos quilômetros de distância. Também, na maioria dos casos, o desaparecido reconstrói uma vida próxima da vida da qual ele fugiu -encontra um ofício parecido com o que ele praticava e cria uma família similar à que deixou.

Essa “constância” nos surpreende porque imaginamos que, em regra, alguém suma por querer uma vida nova. Por alguma razão, o caminho gradativo, que consistiria em se despedir, fazer as malas, fechar as contas etc., pareceria impraticável ou insuficiente aos olhos de nosso fugitivo: talvez ele tenha esperado demais e sua paciência excessiva (para com os outros ou para consigo mesmo) exija, de repente, uma explosão, um corte sem conversa alguma. De qualquer forma, supomos (ingenuamente) que, se alguém decidiu sumir, foi para mudar radicalmente.

De fato, como disse antes, os desaparecidos acabam reconstruindo uma vida parecida com a anterior ao seu sumiço, e isso nos leva à conclusão oposta: talvez quem some não queira mudar de vida -então, ele some por quê?

Conheci pouquíssimos que sumiram, mas conheço muitos que expressam a vontade de sumir. Todos explicam sua vontade da mesma forma: trata-se de fugir de exigências impossíveis de serem satisfeitas. Mas, cuidado: “Eles me pedem demais” é a tradução projetiva de “eu me peço demais”. Quem foge das exigências do mundo está quase sempre fugindo das exigências que seu próprio desejo lhe coloca.
Vamos agora ao que acontece com quem decide sumir apenas para alguém -um familiar (se não a família inteira) ou um parceiro.

Às vezes, é justificada a sensação de que, sem um sumiço, uma relação se eternizaria pela simples dificuldade de qualquer um dos dois reconhecer que acabou. Onde está a covardia, e onde a coragem? Não sei. Talvez haja covardia em não conseguir declarar que um amor terminou, assim como talvez haja covardia na incapacidade de escutar essa declaração. Há a covardia de quem some e também de quem sobra, quando ambos parecem precisar do sumiço de um dos dois para aceitar que a história chegou ao fim.

Há covardia também em fingir que a relação continua, quando ela já morreu. Alguém, aliás, pode sumir para fugir de sua própria covardia, que o mantém calado, ou para fugir da covardia do outro, que não quer ouvir uma frase de despedida.

Seja como for, muitas vezes, alguém acaba uma relação e some porque o que era (e talvez ainda seja) seu desejo se transformou numa exigência intolerável.

Funciona assim: um dos jeitos de nos autorizarmos a querer o que desejamos consiste em transformar nosso desejo numa obrigação. Desejar é mais fácil (embora menos alegre) quando imaginamos desejar a mando de algum outro. O problema é que esse desejo, facilitado por ser mandatário, logo aparece como uma exigência da qual, eventualmente, vamos querer fugir.

Meu voto para o Ano Novo: que nos preocupemos menos em mudar nossas vidas e encontremos jeitos de conseguir desejar o que já desejamos sem transformar nosso desejo em obrigação.

 

Bom texto.

 

 

2/11/2010 às 20h01 | Saideira VIP

Grande Marquinhos!

Descobri como é difícil, sem o auxílio glorioso de duas doses, estabelecer uma conversa minimamente sustentável com gente com quem você não tem intimidade

Por Antonio Prata
Ilustrações: Bernasconi

No último mês, passei por uma experiência interessante: não bebi. Nada. Trinta dias, de cabo a rabo, em que as únicas drogas a correr por minhas veias foram a fenilalanina da Coca light e o pozinho do Miojo. Ok, talvez, se eu tivesse consultado um endocrinologista, ele me dissesse que era mais saudável afastar-me da fenilalanina e do Miojo do que da cerveja, mas, como não conheço nenhum endocrinologista e queria era descobrir como seriam quatro semanas preso a um cérebro 100% sóbrio, 100% do tempo, o projeto foi a abstinência alcoólica.

Não passava um período tão longo sem beber desde os 15 anos, quando, na festa de debutante da Lizandra, tomei meu primeiro chope. E logo o segundo, o terceiro, o quarto – no quinto, tentei agarrar a Lizandra, no sétimo abracei a privada.

Não posso dizer que aquele tenha sido meu último excesso. Houve, dos 15 anos para cá, outras noites bambas, em que soube por minhas próprias pernas que a Terra não era plana e fiz algumas besteiras das quais me arrependo: tentei beijar mulheres que só haviam me perguntando as horas, na pista de dança, acordei ex-namoradas com SMS enviados de mesas de bar – tipo, quarta-feira, 02:46 AM –, resolvi assar uma paleta de cordeiro ou criar uma receita de chilli con carne, pouco antes de o sol nascer. Acontece.

Na maior parte do tempo, contudo, pude apreciar os efeitos do álcool sem grande prejuízo moral ou físico, e sou grato à natureza por ter nos dado esse brinquedo. Para começo de conversa, não fosse ele e eu provavelmente seria virgem até hoje. (Ou você acha que eu teria coragem de ficar pelado diante de uma garota, no auge da minha adolescência, completamente sóbrio? Na boa, só um psicopata é capaz de tamanha frieza.)

Agradeço à bebida, sobretudo, pela forma como ela facilita as relações sociais. Nesses 30 dias a seco, fui a um lançamento de livro e duas festas. Descobri como é difícil, sem o auxílio glorioso de duas doses, estabelecer uma conversa minimamente sustentável com gente com quem você não tem intimidade. Interagir socialmente sem álcool é como acender a churrasqueira sem álcool: o papo não pega, você tem que ficar assoprando e abanando a brasa, para ver se a coisa esquenta. Não esquenta. E por quê? Porque a lucidez é maligna. Sóbrio, você tem o tempo todo a consciência de que aquela conversa é só fachada, de que nem você nem a pessoa diante de si têm interesse em saber nada um do outro, de que só estão perguntando como está o trabalho e se têm visto a Juliana ou o Marquinhos (Marquinhos? Você não se lembra de nenhum Marquinhos…) porque estudaram juntos em 1993 ou calharam de estar na mesma praia, em Ubatuba, em algum réveillon do século 20. E o que o álcool faz, na conversa? O mesmo que no carvão: cria chama sem calor, produz interesse genuíno onde, em sua ausência, haveria descaso. O cara te explica que se formou em veterinária e trabalha com zebu, em Uberlândia, você diz, “Zebu, genial!”, e começa a fazer perguntas. Quando vê, estão conversando animadamente sobre a corcova do boi, e você fica felicíssimo ao descobrir que é dali que vem o cupim, e que a carne chama cupim porque o calombo parece um cupinzeiro. Dez minutos depois, está convencido de que o sujeito é uma pessoa maravilhosa, que vocês têm que se ver mais, talvez até realugar a casa de Ubatuba para o próximo réveillon. Vocês trocam telefones e e-mails, dizem que se verão novamente em breve, e farão um cupim com manteiga, no alumínio, ou uma paleta de cordeiro. Você fala para ele chamar a Juliana, ele diz que levará também o Marquinhos, que ficará feliz em saber do encontro. (Quem diabos será o Marquinhos, meu Deus?!)

É claro que nada disso acontecerá. Toda aquela animação só existiu porque estavam meio bêbados, mas e daí? Pelo menos se divertiram, durante cinco ou dez minutos, batendo um papo numa varanda ou na fila do banheiro. No final, a vida é isso: talvez haja meia dúzia de momentos retumbantes, um pódio, os braços de algumas mulheres, uns aplausos, mas 99% do tempo você estará numa varanda ou na fila do banheiro, conversando com alguém com quem não escolheu conversar. Se não soubermos extrair graça desses momentos, vamos do berço ao túmulo de saco-cheio.

Nesta altura do texto, ouço uma voz distante. Não sei se é minha mãe, minha mulher, meu psicanalista ou a Organização Mundial da Saúde: “Mas precisa necessariamente de álcool para se divertir?”.  Coço a cabeça. Deve haver pessoas que se sentem absolutamente confortáveis em seus próprios corpos, todo o tempo, e são capazes de falar sobre zebus e se despir diante de desconhecidas sem  nenhuma ajuda do etanol. Dalai Lama talvez consiga. Sr. Myiagi, quem sabe? Eu não. Eu preciso das duas doses dessa substância que algum ancestral iluminado inventou, num momento de lucidez – talvez seu último –, ao fermentar trigo, batata, uva, mandioca ou o que estivesse à mão e, num ato de indômita curiosidade, beber o líquido resultante.

Claro, é bom ter sempre em mente a lição adaptada da sacola da padaria: beber bem para beber sempre. (Por “bem”, entenda: com parcimônia.) Por isso, um mês a seco. Por isso, algumas noites por semana, em casa, só na Coca light, assistindo a um seriado ou lendo um livro. Para que aos 78 eu ainda possa falar empolgado, numa varanda ou na fila do banheiro: “Zebu, genial!” e mande abraço para o Marquinhos – grande Marquinhos! –, quem quer que ele seja.

 

MARCELO COELHO

Uma noite de verão


Duzentos anos de Chopin e de Schumann, 150 anos de Mahler… Falar dessa gente é muito arriscado


O CALOR não dá trégua, os carros que passaram na estrada, durante o dia todo, levantaram muita poeira. Boa ideia, agora à noite, regar a grama do quintal, que estava estalando de seca.
A família então estende algumas colchas no gramado. Todos se deitam, sentindo a umidade refrescar o corpo; conversam devagar, olhando as estrelas. A cena é lembrada a partir dos olhos de um menino, com seis ou sete anos no máximo.
“Estamos todos deitados, minha mãe, meu pai, meu tio, minha tia, e eu também estou deitado ali… Essas pessoas todas têm um corpo maior do que o meu. Dizem coisas suaves e sem sentido. Por alguma razão, eles todos estão aqui, todos estão nesta terra; e quem será capaz de contar, algum dia, a dor de estar nesta terra, deitado sobre a colcha, na grama, na noite de verão, entre os ruídos da noite?”
O menino adormece aos poucos, cercado da família, mas ao relento. Impregna-se dessa mistura de proteção e desabrigo, de conforto e medo, de pequenez e desproporção, que é tão típica da infância.
O menino é James Agee (1909-1955), jornalista e crítico de cinema, lembrando sua infância em Knoxville, no Tennessee. O texto está na abertura de um dos livros mais tristes que já li, “Morte na Família”, publicado há alguns anos no Brasil pela editora Germinal.
Saiu também, pela Companhia das Letras, “Elogiemos os Homens Ilustres”, longo livro de Agee sobre famílias de agricultores miseráveis durante a Grande Depressão, acompanhado das célebres fotografias de Walker Evans, curiosamente sóbrias em meio à elocução lírica do texto.
Mas lembro “Knoxville, Tennessee” não só por causa do verão, mas também porque o ano está quase acabando, e eu deixei passar sem comentário as suas principais comemorações em matéria de música clássica. Duzentos anos do nascimento de Chopin e de Schumann, 150 anos de Mahler…
Falar dessa gente é muito arriscado. Sempre haverá algum texto melhor, escrito há décadas, sobre esses compositores, que dá vontade de simplesmente copiar. Roland Barthes sobre Schumann, por exemplo: o jeito que suas melodias se “espreguiçam” sobre o piano. Ou Vladimir Jankélévitch sobre Chopin: os muitos lugares da sua música onde a morte se esconde.
Acontece que 2010 é também o centenário de nascimento do compositor americano Samuel Barber, que pôs em música essa lembrança do verão sulista escrita por Agee. Há várias versões em disco desse “Knoxville 1915”, para soprano e orquestra.
Barber é conhecido, atualmente, como o autor do inevitável “Adágio para Cordas”, ou “Adagio for Strings”, para os mais íntimos. Foi a música de “Platoon” e de muitos serviços fúnebres oficiais nos Estados Unidos.
Acho difícil julgá-lo agora, que ficou tão batido. Deve-se dizer que algumas das obras mais importantes de Samuel Barber não resistem a muitas audições.
O “Concerto para Violino, op. 14”, a primeira vez que você ouve é um deslumbramento. Mas parece que diminui e se esvazia cada vez que se volta a ele. Sem dúvida, esse tipo de coisa acontece com muitos compositores que, em meio à austeridade, à violência e à ruptura dos grandes mestres modernos, procuraram linguagens mais acessíveis, ou conservadoras, para se comunicar com o público.
Não sei se isso vai acontecer com “Knoxville, 1915”. Tudo começa com um motivo de três, quatro notas, num ritmo vagaroso, como uma cadeira de balanço. Passa um carro, passa um bonde, a música fica mais “urbana” e moderna, até chegar a hora das colchas no quintal.
Aí o tema da cadeira de balanço volta, mas as notas trocam de lugar, e parecem desdobrar-se em muitas perguntas. A voz da soprano vai alcançando estratosferas mahlerianas, enquanto o texto diz o seguinte.
“Depois de um tempo me levam para dentro, me põem para dormir, e me recebem. São essas pessoas que silenciosamente cuidam de mim, como alguém familiar e muito amado nessa casa: mas que nunca irão, não, nunca irão, não agora, nem nunca, nunca irão me dizer quem eu sou.”
Essa solidão, estranhamente, parece doer menos quando pensamos em nós, e mais quando pensamos nas pessoas a quem amamos. Não há como protegê-las delas mesmas; nem como saber quem é cada um, realmente, enquanto a noite cai.

coelhofsp@uol.com.br

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